ser genioso não significa ser genial

17.10.09

- Vem, te espero.

-Não vou.

-É que você sorriu de um jeito... daquele jeito e parecia que dizia... te espero, nada importa. vem.

-Mas eu não disse. eu não digo.

-Diz, só uma vez. que de tanto ouvir perdi o gosto, mas agora eu preciso tanto. diz só mais uma vez, mesmo que não seja verdade. diz, porque preciso ouvir. porque preciso eu mesma dizer, eu inventei tantas palavras bonitas, uma língua inteira de palavras que dizem amor e são todas para você. diz, ao menos, palavras que não fazem sentido mas que foram nossas, diz qualquer coisa, que quero ouvir sua voz. ou não, melhor assim. não diz nada e sorri, que conheço em seus olhos palavras que não têm som. e então, fica finalmente em silêncio. e vem.

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5.10.09

ela dizia vem agora. o trem já parte, são poucos minutos, vem. ela tinha lábios bonitos e usava palavras como: harmonia, realização,esplendidez. e suas histórias de longe tinham finais felizes com pôr de sol e noites estreladas, abraços demorados, mãos dadas. a outra parava a costura e por um momento pensava. para ela nada fazia muito sentido, mas era bonito de ouvir, es-plen-di-dez. e ela ficava ali, escutando, era como música, imaginando. mas um dia os lábios disseram: é hora, vem. ela sentada, no mesmo banco, a lâmpada acesa da máquina de costura a esquentar as idéias. e a outra tinha pressa, o trem, vamos. pensou no serviço atrasado, a casa precisando de faxina, os lábios bonitos que pareciam uma vagina. pensou que a outra, inteira, parecia uma vagina macia, rosada. olhou a outra mais uma vez, tão bonita. sorriu, baixou os olhos e voltou a costurar.

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11.8.09

Seus olhos que mudam de cor. Há meses que sinto como anos, vidas inteiras de você. Quero escrever seus olhos verdes, em dias quentes demais. Ou do pálido quase bege de tarde da noite, quando perdemos nós dois o sono e assistimos à gata brincar. Quero contar do castanho claro que é raiva, do escuro que é amor. De uma cor que não existe e que é só sua, quando você sou quase eu. Mas não sai direito. Talvez eu não saiba mesmo explicar, talvez não queira. Seus olhos, os quero meus.

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7.11.08

irmão.

Minha mãe tinha pernas mágicas. Era assim que eu a via, como desenho animado: quadril e pernas, principalmente. E essas danadas que levavam minha mãe embora, sempre na hora de trabalhar. Eu me agarrava firmemente, berrava: te adoro, mãe, te odeio, pernas. Um dia eu gostei muito das tais, o dia em que uma delas se quebrou. Caiu a mãe, quebrou-se a perna. Gostei tanto, que agora não a levavam mais. Mas aí, a mãe também era barriga. E foi ficando tudo pequeno, o gesso, a perna, a mãe virando uma barriga enorme. Depois disso, o gesso e a barriga foram embora, a mãe voltou pra´quela andação, perna para cá, perna para lá. Mas ficava o bebê, dizem que era ele a tal barriga. Ele não era assim um par de pernas, mas até que não era ruim.

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5.11.08


- se me fiz independente, foi às custas de te ser distante.

as mãos se tocavam por cima da mesa pequena da cozinha escura. era sexta-feira e, como chovia muito, faltava luz. ela até encontrava meia vela esquecida na gaveta de talheres, tateava os fósforos às cegas e sentava, palito em mãos. mas de repente a falta de luz, de som da tevê, tudo parecia muito confortável. ele pegava sua mão em um gesto antigo já meio esquecido, quase desajeitado. então a obrigação do jantar, os amigos esperando, tudo ficava menos urgente. e os barulhos de fora, trânsito, chuva, ambulância, aumentavam ainda o silêncio na cozinha pequena do apartamento quitinete de preço exorbitante mas muito bem localizado na zona sul. e depois do tempo passado, tempo que nem foi medido em minutos ou horas, mas tempo tátil da sensação morna do toque da mão na outra, depois, aquilo.
.

agora ela despertava daquele semi-transe para encontrar os olhos do outro. olhos que na penumbra pareciam claros como nunca antes e foi como se cruzassem, os dois pares, pela primeira vez. e voltavam coisas que já pareciam mortas, inquietude, estranhamento, amor.

- se me fiz personagem é porque escondo em fatos pitorescos e óculos interessantes o medo de mostrar quem sou. pois se me sinto é pequena, ridícula e já não encontro saída entre tanto ornamento e certo verniz.

a luz se acendia e os punha de pé, em sobressalto.

e de novo aquela pressa, os amigos, a tevê. e se arrumavam sem palavra, cuidadosamente mal vestidos. e ela pegava a bolsa, desligava a televisão e falava de novo, pela primeira vez.

-amor, faz frio lá fora, não esquece o cachecol.

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2.5.08

naquelas tardes. às vezes curtas, muitas outras longas demais. falavam sempre de bolsas e algum desfile, quem usa tanta maquiagem essa hora da tarde, meninos bonitos, desavenças. então, no meio, uma palavra quase perdida como eu quis tanto, antes não era assim, quem sabe um dia. coisas secretas escapadas. e reclamavam a falta. sem ver que agora tinham uns aos outros, e se bastavam. o castelo estava feito.

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23.3.08

ela: eu sou um livro aberto...

ele: eu sou uma bula de remédios.


(ela conta histórias fantásticas enquanto maqueia o que tenta ser. ele tem contra indicações e efeitos adversos impressos em preto e branco. ela quer, custe o que custar. custe quem custar. ele paga o preço de ser como é; só e cru. ela quer amor? ele não a quer.)

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mais que felicidade, te desejo lirismo.
te desejo borboletas.

(dedicatória para quem amei)